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PERDOEM-ME A AUSÊNCIA!

por Keila, a Loba, em 19.02.06

Não posso dizer que a tempestade passou porque seria uma inverdade. Aconteceu algo muito ruim, algo que me perturbou bastante, e estou fazendo um esforço sobre-humano para prosseguir a minha vida profissional de forma, digamos, contemplativa, pois não espero absolutamente nada em se tratando de reparação.


Recebi um paciente se dizendo diabético e dependente de insulina, que foi introduzido no Programa Reviver como todos os outros. Abri todas as portas, dei-lhe todas as chances de ingresso e participação, até que os outros notaram um certo "quê" autoritário no Ernesto - nome da criatura. Ignorei o apelo de muitos achando que estavam enciumados, pois o tal Ernesto era inteligente e extremamente participativo. Erro grave o que cometi. Só mais tarde vim a saber que o cara havia se aliado à direção do posto de saúde onde trabalho e organizado uma associação de diabéticos e hipertensos para tornar-se coordenador do meu trabalho, o representante maior, pois desconsideraram o absurdo de eu, terapeuta, servidora municipal, autora e promotora do Reviver, ficar na coordenação geral do Reviver, mas o Ernesto, um cara sem qualquer vínculo com um trabalho de 5 anos, sem a menor ou maior formação profissional, recém-eleito presidente de uma recém-criada associação (para fazer em termos práticos sabe-se lá o que) ocupar a minha sala no período da tarde com a tal associação política, que certamente serve para fins nada ortodoxos. Aos menos avisados, se o Reviver funciona pela manhã naquela sala, e cuidando de pessoas com diabetes, hipertensão, câncer, a associação do Ernesto estaria na mesma sala e "provavelmente" com uma mesma agenda e propósito. Seria essa a fachada vendida. Mas não tenho nada a ver com política, não trabalho com essa sujeira, e jamais envolveria meu trabalho com esses canalhas.

A situação ficou de uma maneira insustentável. Se os pacientes estivessem no auditório, fazendo seja lá o que fosse, o Ernesto se achava no direito de invadir o auditório porque "já havia agendado atividade antes do Reviver", ou seja, não tínhamos mais espaço para continuar a trabalhar. O que fiz? Arrumei as minhas coisas e, sem comunicar à direção, fui buscar uma outra unidade de saúde para dar continuidade ao meu trabalho. A direção me denunciou à supervisão de saúde maior alegando abandono de coordenação, disse que eu havia interpretado mal as atividades do Ernesto, que a sala é do posto e pode ser compartilhada com quem a direção quisesse, blá blá blá blá blá............Soube da própria comunidade, também da direção, que o Ernesto havia se engajado na campanha para o conselho tutelar e, é claro, trabalhou com afinco para a eleição do candidato da direção do posto de sáude, e este acabou por ser eleito com maioria absoluta.

Pasmem, mas o Ernesto foi eleito presidente do Conselho Regional de Saúde da SER I. Pouco? Sabem que ele também ocupa o cargo de secretário do Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza, e tem trânsito livre com os tidos "figurões" da administração municipal? Sinto-me envergonhada por ter contribuido para a entrada do PT na prefeitura de Fortaleza, tendo ajudado a eleger o Lula na presidência do Brasil. E minha dor é ainda maior quando leio uma carta débil, romântica, desproposital e imbecil que fiz chegar às mãos do presidente da república.

LEIAM MAS, POR FAVOR, NÃO COMENTEM NADA! Dou-lhes, porém, o direito de ter piedade dessa pobre e imatura Loba.


Fortaleza, 06 de março de 2004.

Senhor Presidente da República.

Para escrever esta carta, tranquei a porta do quarto, pedi que não fosse incomodada e coloquei uma música suave para relaxar e deixar as idéias fluírem. O ritual acima justifica o momento único, tão sonhado, que pretendo compartilhar com um nordestino que sofreu muito, desacreditou no futuro e nas pessoas, mas jamais deixou de sonhar e construir possibilidades. Sei o que isso significa, Senhor Presidente. É por termos sentimentos tão comuns que resolvi escrever esta carta.

Sou uma nordestina de Fortaleza, servidora pública municipal, mãe de duas filhas adolescentes. Aos 40 anos, sou terapeuta ocupacional, com pós-graduação em psicopedagogia clínica e institucional e especialização em educação emocional e ecologia humana. Não tenho um currículo brilhante, pois não domino nenhum idioma, não viajei, não trabalhei em uma grande corporação ou ostento diploma de uma importante universidade, mas tenho algo que desperta curiosidade: a criatividade e ousadia. Na minha profissão, onde muitos desconhecem o nome e o que faz, trabalhamos com o ser humano, seus sentimentos, sonhos, emoções e fantasias, motivo pelo qual temos um espaço respeitável na mídia de Fortaleza para divulgar atividades integrativas. Escutar as histórias individuais e familiares, realçando e preparando o indivíduo para as incontáveis possibilidades de uma vida feliz e produtiva nas esferas física, mental, emocional e social é a nossa receita de saúde. Se o foco da medicina é tratar doenças, nós, terapeutas, identificamos e fortalecemos o que ainda não adoeceu e passamos a buscar um resquício qualquer de vida, um brilho no olhar, por menor que seja, e nos preparamos para transformar essa centelha em algo que valha a pena, que seja grande e cheio de esperança. Na verdade, nossas práticas terapêuticas até parecem míticas, por que são especiais, e não costumam ser valorizadas porque trabalhamos por uma saúde que ouve, interpreta e harmoniza mente, emoções e corpo.

Quem questiona as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que procuram retomar o caminho da saúde é a mídia, e faz questão de mostrar que a ciência médica é exageradamente especialista, tecnicista. e corporativa. É comum, embora doloroso, observar as atenções dedicadas aos pacientes com bom nível financeiro e social, restando ao paciente do SUS o olhar vazio de profissionais apressados e pouco empáticos para pesquisar necessidades. O que assusta é o fato de que, a cada dia, milhares de pessoas dependem de atenção, remédios, exames, tratamentos e terapêuticas humanistas, das eternas e cansativas idas e voltas de um médico para outro, com seus diagnósticos diferenciados. A peleja pela saúde maltrata os pobres e rouba-lhes dias preciosos de vida. Se têm direito aos remédios, não têm alimento, trabalho e esperança. Ao governo, sociedade e demais instituições, cabe equilibrar as necessidades, humanizar o atendimento, suprir carências, integrar atendimentos, ouvir e dar vazão às necessidades das pessoas.

Não poderia ser diferente. Governos, cientistas, corporações, profissionais de saúde e sociedades que não enxergam o indivíduo como um todo unificado e inseparável, infelizmente, desconhecem a importância da transdisciplinaridade na medicina humanista que tanto precisamos. Acredito que estamos quase nos acostumando aos gastos governamentais e particulares que não atendem as expectativas e necessidades dos que procuram saúde, quando sabemos que são esses os caminhos que fazem milionárias as indústrias médica e farmacêutica. Lamentável é perceber a formação contínua e sustentadora de pessoas incapazes, doentes, dependentes e infelizes, sem que possamos lhes apresentar soluções práticas onde ciência e cura física, emocional e espiritual estejam envolvidos e interessados, de fato.

Meditar e viver todo esse processo me leva a conversar com V. S., a confessar a minha dor, pois amargo há muito tempo o efeito gaveta: o meu trabalho é lindo, maravilhoso, diferente, criativo... Mas não consegue sair da gaveta como terapêutica não medicamentosa. Como servidora municipal, coordeno um grupo de pessoas doentes, de segunda e terceira idades, funcional em uma unidade municipalizada há quase três anos. O Programa Reviver, nome dado ao conjunto do atendimento, existe por necessidade da comunidade e teima pessoal, não por investimento institucional. E é constrangedor me submeter à política para que outros não interfiram ou me destituam do que criei, sem esquecer de que recebo um salário franciscano para manter um trabalho social que cria vínculos e colhe resultados satisfatórios.

Essa beleza sutil e insustentável de que falo só ilustra um trabalho terapêutico. Com o respeito dos pacientes, apoio e reconhecimento da comunidade e da mídia, o interessante Programa Reviver amarga o desinteresse público para expandir suas abordagens, motivo pelo qual estou absolutamente desmotivada. O sonho do mestrado parece cada dia mais distante, pois o desestímulo emocional e financeiro afeta a necessária compreensão de que o único caminho é a educação, ainda que de retorno a longo prazo. Assim, cursos, workshops, congressos e outras atualizações estão sendo negados por conta do dinheiro escasso. Tive que encerrar uma sociedade na qual dividia uma sala com duas amigas porque elas também não tiveram como bancar despesas, pagar impostos, manter pacientes e obter um retorno mínimo de anos de investimento em educação. Aluguel em clínicas particulares tem retorno duvidoso, pois profissionais que conheço estão com dificuldades para manter convênios, cada vez mais exigentes e burocráticos, motivo de sobra para encerrar atendimentos. Por que tantas dificuldades? A resposta é sempre a mesma: muita gente doente e pouco dinheiro para despesas com saúde.

Antes do Reviver, estive com portadores da tuberculose em um programa de reconstrução dos espaços sociais perdidos. Num momento de inspiração, criei um certificado de saúde para ajudar esses pacientes a retomarem seus empregos e lugar na família, caso a sociedade duvidasse da cura obtida. Nessa época, recebemos a visita de um representante do Ministério da Saúde para ver o que havia de especial no trabalho por nós desenvolvido, mas jamais obtivemos um retorno ou interesse em ampliar o pouco que tínhamos. Também encarei trabalho social e de reabilitação psiquiátrica com garis na empresa municipal de onde saí, apresentei projetos para gestantes e dependentes químicos, além de outras passagens. Propostas para fazer desses atendimentos referência não faltaram, mas os gestores jamais esboçaram o menor interesse. Coincidência ou não, projetos apadrinhados sempre tiveram uma certa simpatia, ainda que não fossem completamente concretizados. Os meus, desapadrinhados, serviram para promover chefias de homens e mulheres que jamais deixaram de receber bons salários.

A questão não é só financeira: é também de visão e de referência. Conheço pessoas que gostam do trabalho público, que se esforçam, e só conseguem acumular dificuldades e problemas. Fico me perguntando o que há de errado comigo e com elas. Não devo levar a questão pelo lado idealista, ou pessoal, mas estou re-avaliando crenças e valores, especialmente se o que faço é estereotipado e comum aos que se matam por causas universais, mas invisíveis aos olhos de governos e sociedades absolutamente cegos diante da crise de sentido e significado em que vivemos.

Dizem que sou idealista demais, que me entrego, que sonho coisas impossíveis e parcerias que jamais sairão do papel... Fico imaginando se ser assim é portar um defeito mortal para quem trabalha com a coisa pública ou acredita na sua reestruturação, pois optei por caminhar em desencontro aos que nada fazem ou, se muito, fazem ruim e pouco. A dúvida crucial é se nós, profissionais de reintegração, continuaremos na gaveta da cegueira pública e privada. Haverá, realmente, investimentos humanos no governo PT, necessidade essa preconizada por autores que argumentam que nação alguma poderá crescer e ganhar espaços se não atender as expectativas e necessidades de seu povo?

Vejo o Presidente do Brasil na televisão, falando ao mundo que países ricos devem investir contra a fome nos países pobres, combater a miséria e todas as outras mazelas que minorizam a condição humana... Resume tudo o que pensamos. Traduzo o discurso como um convite ao social, ao humanismo, que necessita dar aos pobres uma parcela do que têm os ricos, pois não há dinheiro que pague um coração aliviado, uma alma equilibrada, a paz conquistada. É quando penso que a estrela Lula simboliza o Brasil que somos e o país que pretendemos; mas há de ser necessário reparar os espaços vazios que ainda existem no atendimento público. Se a burguesia argumenta que o atual governo não é intelectualmente preparado como dizem ter sido o anterior, o governo do PT não pode insistir na visão de mundo e homem fragmentados que os antecessores deixaram como legado.

E foi pensando em tudo isso que senti a necessidade de conversar sobre esses questionamentos com o Presidente da República, um nordestino humilde, de olhar brilhante, inteligente e ousado, como eu e muitos outros, mas agora está tendo a oportunidade de reescrever a sua e a história de toda uma nação. Se sentimos as dores do nordestino que chegou à Presidência? Eu e milhões de brasileiros sofremos, mas estivemos confiantes nos ideais propostos; viajamos num sonho coletivo, ainda que conscientes de que a obstinação conduziu o cidadão Lula ao destino planejado. Mas preciso elucidar uma dúvida: se quisermos trabalhar, nós, que lutamos por um atendimento justo e digno, ainda temos muito que sofrer? Qual a proposta do governo para humanizar atendimentos, em saúde e salários?

Num rápido vislumbre, imagino o que deve ter passado o Senhor, Presidente, para insistir e resistir contra tudo o que sempre foi negado aos nordestinos, motivo pelo qual acredito que estou chorando no ombro certo. Pensei em enviar esta correspondência pelo correio, mas o momento que possibilitou o contato aconteceu antes que eu pudesse escanear material para comprovar o que foi dito. Porém, acessando www.comviver.rg3.net., V. Ex. poderá visitar a página do Reviver.

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