"O tempo é como um rio.
Você não pode tocar a água de
um rio duas vezes,
porque a água que passou por
entre as suas mãos não é a
mesma que vai molhar a
sua cabeça".
Não era nem grande e nem pequena. Tinha as paredes da fachada castigadas pela ação dos ventos, e o pouco que ficava à mostra estava coberto por densas ramificações de hera que saíam de todos os lados. As janelas mostravam apenas uma bela cortina de motivos florais, e isso impossibilitava ver o movimento no interior da casa; mas a porta, muito larga e muito baixa, vez por outra ficava entreaberta.
O ponto principal da casa era um jardim cheio de cravos, margaridas, petúnias, rosas e gérberas que se deixavam ver por poucos. Para muitos aquele jardim estava morto, salvo o canto dos pássaros e revoadas das borboletas que ocasionalmente quebravam o desencanto de vê-lo. Duas velhas cadeiras brancas com almofadas coloridas eram as únicas peças aconchegantes da varanda, e estas pareciam soberbas ante a verde galhada do jambo que sombreava o canto esquerdo principal do jardim.
Os que moravam na casa eram tantos, e tão diferentes, que aquela casa parecia uma cidade. Vi adultos sorridentes entrarem e saírem de lá tão tristes que dava dó, mas também vi crianças entrando com as mãos vazias e de lá saírem carregando brinquedos coloridos. Às vezes as mulheres ficavam pensativas ante o caminho que as conduziriam a porta, choravam, punham as mãos na cabeça, mas entravam, e saíam bem mais tarde com um minúsculo e presente brilho nos olhos. Vi um idoso saindo da casa trajando um grosso roupão de banho levar imensas malas de viagem e bagagem de mão apenas para dar uma volta no quarteirão. Também deixei de ver pessoas que entravam e saíam de lá desaparecerem, sumirem de vez, sem que jamais as visse em qualquer outro lugar. Um dia, no início da noite, uma carruagem parou defronte a casa e nela subiram, abraçados e sorridentes, um magérrimo homem aranha e uma cinderela que tinha quase dois metros. O que sei, com absoluta certeza, é que um gatinho siamês era visto todos os dias correndo na grama verdinha do jardim.
Às vezes ouviam-se gritos, lamentos e palavras obscenas saídas da casa, e esses ruídos eram intercalados com uma música de fundo que parecia a trilha sonora de uma vida largada e vazia. Lembro-me de uma noite em que diferentes pessoas se viram magnetizadas pela Lua cheia e se encontraram no jardim, acenderam fogueira, cantaram musicas alegres e tocaram violão. Nessa noite vi dança, também vi pessoas de mãos dadas, vi abraços, beijos e felicidade, ouvi sorrisos, promessas, mas uma chuva forte e inesperada pôs algumas pessoas para o interior da casa às pressas. Percebi que a grande maioria dos que riam alto, dos que beijavam e cantavam correram para todos os outros destinos que a rua permitiu, e apenas um homem aparentemente desequilibrado continuou entoando as canções daquela noite memorável. Depois a chuva parou, e por toda a madrugada a casa pareceu vazia e mal-assombrada.
As pessoas passavam pela calçada da casa dos perdidos e sentiam-se atraídas por uma misteriosa energia que parecia ter aquela construção. Eu, muito curioso, outro dia passei defronte e vi a porta entreaberta, vi o gatinho preguiçosamente deitado na almofada da cadeira e o peguei no colo, mas uma gargalhada ruidosa chamou a minha atenção. Não resisti e entrei. Foi quando vi um homem de meia idade sentado ao chão da sala minimalista, falando ao telefone celular com um aparente amigo, pichando a parede principal com generosas pinceladas de tinta numa mensagem que dizia: Tudo passa. O restante da parede era negro, vermelho, azul, amarelo, verde...
Ana, amiga, eu escrevi esse texto em dezembro passado enquanto aguardava notícias do tio do meu marido, alguém não muito simpático, mas que nos ajudou nos momentos mais difíceis da vida. Ele me fez entender que não precisamos de sorrisos para sermos bons, mas precisamos de ações para materializar e perpetuar quem somos. A casa do "Tio Genésio" era um lugar mágico que reunia toda a família, e era incrível como alguns entravam lá carregando os piores problemas do mundo, mas saíam livres, leves e felizes como uma folha levada pelo vento.
Foi o Tio Genésio quem me inspirou a escrever o texto, de forma que eu sou a autora.