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"O tempo é como um rio. Você não pode tocar a água de um rio duas vezes, porque a água que passou por entre as suas mãos não é a mesma que vai molhar a sua cabeça".
“Nunca vi um fanático com senso de humor”. A frase foi dita pelo escritor israelense Amos Oz, numa série de conferências sobre o mundo pós 11 de setembro de 2001, na universidade de Tübingen, na Alemanha. Ele prossegue: “Nem nunca vi uma pessoa com senso do humor se transformar num fanático, a não ser que ele ou ela tenham perdido o senso de humor”.
Lembrei deste ensaio quando vi os humoristas brasileiros promoverem, como disse Marcelo Tas, esta coisa seriíssima de ir às ruas para protestar contra a proibição de fazer humor com os candidatos em programas de rádio e de TV, como aconteceu neste domingo no Rio de Janeiro. “Humoristas são criaturas que não nasceram para organizar passeatas. Mas, diante de tamanha palhaçada no processo eleitoral brasileiro, alguém tinha que fazer alguma coisa. Mesmo que seja uma passeata de palhaços.” Numa entrevista à BBC de Londres sobre o tema, Tas, que comanda o programa CQC nas noites de segunda-feira na TV Bandeirantes, afirmou que não é simples lutar contra ignorância. Não é mesmo.
Mas, pensando em Amos Oz, me parece que pode ser ainda mais complicado: esta é uma luta contra a intolerância. Ainda que a intolerância e a ignorância possam ser feitas da mesma matéria. E que ambas venham disfarçadas, como muitas outras coisas que estão tentando nos impingir, pela embalagem cor-de-rosa do politicamente correto.
A resolução aprovada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) estabeleceu que, desde 1º de julho, as emissoras estão proibidas de "usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido político ou coligação, bem como produzir ou veicular programa com esse efeito". A decisão se baseia no artigo 45 da lei 9.504, de 1997. Quem a infringir, pode ser multado em até R$ 106.410 – valor que dobra em caso de reincidência. A norma serviria supostamente para, entre outras coisas, evitar que características e fragilidades de toda ordem dos candidatos fossem usadas com finalidades de humor em qualquer programa. E, assim, evitar que fossem “difamados” e, como consequência, “prejudicados” pelo riso dos eleitores.
Consigo entender facilmente por que uma ditadura teme o humor, a ponto de encarcerar, torturar e até matar quem o pratica. Mas por que razão uma democracia decide proibir o humor com candidatos a um cargo eleitoral? Afinal, de que estes legisladores têm medo? Por que seriam os candidatos a um cargo eletivo os únicos intocáveis? Qual é a ameaça que justifica a proibição de rir?
Engana-se quem pensa que o humor é algo trivial. Se fosse, aliás, não haveria tal proibição. Engana-se também quem pensa que possamos prescindir dele. O humor não é supérfluo, é essencial. Quando se consegue transformar uma tragédia em humor estamos consumando um ato de profunda subversão. Nos apropriamos de uma verdade para, pelo riso, torná-la ainda mais nua. Feito por homens e mulheres mascarados, por uma maquiagem de palhaço ou pelos trejeitos de um personagem, o humor é aquele que arranca as máscaras. Seja das grandes vilanias, seja das pequenas mazelas da vida cotidiana.
Rir de si mesmo é um ato civilizatório. Em qualquer eleição, talvez uma das informações mais importantes sobre um candidato é justamente se ele é capaz de rir de si mesmo. Se não for, pense bem.
Não ser capaz de rir de si mesmo é ser capaz de muitas coisas. A maioria delas bem ruins. Quem se considera imune ao ridículo, se coloca acima de todos os outros. Acredita que tudo o que faz é tão sério, é tão certo, é tão importante que, ao estar tão abarrotado de razão, não sobra espaço nem para dúvidas nem para piadas. Todos nós somos patéticos em alguma medida – e esta consciência é parte do que nos torna humanos. Quem não consegue rir de si mesmo, quando tropeça no tapete – sim, porque todos nós enrolamos os pés uma ou muitas vezes em diferentes tapetes ao longo da vida – manda demitir algum suposto responsável pela queda que acredita não lhe pertencer. Ou matar, conforme o nível de tirania do lugar onde vive.
Quem não consegue rir de si mesmo acredita que suas crenças – sejam elas ideológicas, morais ou religiosas – são mais certas que as de todos os outros. E se são mais certas devem ser impostas sobre as de todos os outros. O raciocínio seguinte é que, se as suas crenças têm mais valor, logo ele, a pessoa ou grupo que detém estas crenças, é melhor que todos os outros. E se é melhor que todos os outros a sua vida vale mais do que a de todos os outros. Logo todas as outras vidas valem menos e são sacrificáveis.
Ser capaz de rir de si mesmo é um upgrade civilizatório. Você consegue imaginar Bin Laden achando graça de alguma bobagem que fez, de algum escorregão na caverna? Você é capaz de conceber Adolf Hitler se olhando no espelho e achando seu bigodinho um pouco ridículo ou pensando que afinal suas pinturas não eram mesmo tão boas assim? Você consegue imaginar algum destes facínoras que infelizmente progridem no mundo em todas as épocas se perdoando pelo seu ridículo? Não, claro que não. Mas é fácil imaginar o que fariam com quem risse deles.
E nós? Somos capazes de rir de nós mesmos, seja na vida privada ou na pública? Não custa lembrar que o Brasil tem grandes dificuldades quando é alvo do humor alheio. Quando a família Simpson desembarcou no Rio de Janeiro no episódio “O Feitiço de Lisa”, houve uma avalanche de protestos. Na animação, o personagem Bart era atacado por pivetes e Homer sequestrado por um taxista. Em seguida, levado até a Amazônia, que ficava bem ao lado. Ao tirar o saco da cabeça de Homer, um dos bandidos diz: “Aproveita pra olhar porque estamos queimando ela toda”. Há cobras e macacos no Rio, sem contar que apresentadoras de TV balançam os peitos num programa infantil chamado “Telemelões”. Na época, a Riotur ameaçou processar a Fox, produtora do seriado de animação, e por causa disso virou piada na imprensa mundial.
Mais recentemente, o ator e comediante americano Robin Williams causou polêmica ao fazer uma piada no programa de David Letterman com a escolha do Rio de Janeiro para sediar os jogos olímpicos de 2016. Depois de dizer que Chicago, sua cidade natal, entrou em “desigualdade de condições” na disputa, brincou: “Espero que ela (Oprah Winfrey) não esteja chateada de perder as Olimpíadas. Chicago enviou Oprah e Michelle (Obama). O Brasil mandou 50 strippers e meio quilo de pó. Não foi justo”. Há quem nunca mais tenha visto os filmes de Robin Williams depois de tal ofensa à imagem nacional.
Alguns de nós – ou a maioria, como parece ter sido o caso nos dois exemplos citados – podem achar as piadas de mau gosto, preconceituosas ou mesmo injustas. Ninguém é obrigado a achar engraçado. E daí? Será que os estereótipos vieram de Marte e não contêm nada próximo de alguma verdade? Será que os humoristas do mundo inteiro teriam de passar por uma censura prévia para analisar se seus esquetes e sátiras são agradáveis para os brasileiros? O humor é necessariamente do contra. Querer que o humor seja politicamente correto é matar qualquer possibilidade de humor. Não deixa de ser curioso que num país tão gaiato em muitos sentidos seja bem difícil aceitar piadas com nosso umbigo. Já quando o assunto é o outro, aí adoramos. E achamos que está tudo bem.
A questão é que talvez não seja tão por acaso que uma lei estapafúrdia destas, proibindo de satirizar os candidatos de uma eleição, esteja aí há mais de dez anos. Sempre vale a pena olhar um pouco para dentro para perceber o quanto estamos aptos – seja como povo, seja como indivíduo – a rir de nós mesmos. Ainda que seja como princípio de uma reação a verdades que tantos nos incomodam. Talvez esta lei tenha mesmo algo a ver com a gente – e não apenas saído de cabeças mirabolantes. Neste quesito, temos muito a aprender com os Estados Unidos, onde qualquer um – e especialmente o inquilino da Casa Branca – é alvo de todo o tipo de humor como parte da convivência democrática.
Como afirmou Gustavo Binenbojm, professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ao jornal O Globo: “A atual lei eleitoral é própria de sociedades que passaram por períodos de ditadura militar e ainda não atingiram a maturidade da liberdade de expressão. O que é essa maturidade? Defender a liberdade de expressão ainda que, circunstancialmente, ela possa se voltar contra você”.
Fazer humor com os políticos, com os governantes e com os poderosos é obrigatório. É imprescindível. Isso faz com que sejam lembrados que, como todos os mortais, eles também são ridículos. Iguala-os. Pinça-os das estratosferas da vaidade e da bajulação onde vivem e devolve-os ao rés do chão. Os humoristas, garantidos pela liberdade de expressão existente em qualquer democracia que mereça o nome, ajudam os políticos, governantes e poderosos a se manterem no seu real tamanho – nunca muito diferente daquele do mendigo da esquina. Ou do seu eleitor. E nos ajudam a lembrar que eles pertencem ao mesmo mundo que nós. Ao mesmo ridículo.
Não é pouca coisa o que nos tiraram nestas eleições ao blindar os candidatos contra o humor. Ainda assim, não fosse o barulho dos humoristas, estaria passando batido. Isto também é bem assustador: parece que estamos ficando cada vez mais passivos diante de tantas proibições. Ninguém está apedrejando ou executando um humorista que ousa fazer humor com um candidato, como poderia acontecer nos regimes totalitários, mas criaram uma lei para nos impedir de humanizá-los com nosso riso. De lembrá-los, a eles e a nós, que somos todos patéticos em alguma medida. Esta, aliás, é uma grande qualidade do humor: ao diferenciar sua vítima, a iguala.
Neste mesmo ensaio sobre a natureza do fanatismo, Amos Oz afirma que a melhor maneira de imunizar os povos contra o germe da intolerância seria distribuir “pílulas humorísticas” às populações do mundo, caso isso fosse possível. Como não é, acho que no nosso caso poderia valer a pena lembrar que vivemos numa democracia duramente conquistada e nos somar aos humoristas para reivindicar a devolução do nosso direito de rir dos candidatos. E do direito de lembrá-los de que devem rir de si mesmos todos os dias. Assim, quem sabe, eles não transformem o país numa piada sem graça depois de eleitos.
Não deixa de ser curioso que, ao se lançar seriamente como candidato nestas eleições, o palhaço Tiririca faça sua campanha com os seguintes bordões: “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”. Ou: “Vote no Tiririca, que pior que tá não fica”.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI165140-15230,00.html
ELIANE BRUM
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).
Imagens Extraídas de Mensagens que recebi via E-Mail